18.06.2025
A Erosão dos Direitos Humanos
Artigo de Opinião – Cláudia Pedra
Durante anos, os romances distópicos de Orwell e Huxley eram vistos como realidades distantes e inatingíveis. Afinal, como poderíamos, como seres humanos, permitir que líderes autoritários nos controlassem de tal forma, que as liberdades fundamentais e os direitos humanos deixassem de existir? Infelizmente a distopia está à nossa porta.
Ao olhar para o mundo em 2025, é difícil não sentir revolta e tristeza. Depois da muito inspiradora Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 e décadas de trabalho a construir as bases do direito internacional de direitos humanos, vemos tudo isso erodir, com uma rapidez avassaladora. Com regimes autoritários a surgir um pouco por todo mundo, vemos a normalização de graves violações de direitos humanos, a coberto de falsos pretextos, como a insegurança ou a instabilidade económica. É normalizado tentar propor legislação para poder verificar os órgãos genitais das crianças, antes dos torneios escolares. É normalizado deter crianças de dez anos e afastá-las da sua família, porque os pais são migrantes. É normalizado erradicar todas as manifestações da palavra “diversidade” em contexto escolar e nas empresas. É normalizado demonizar grupos minoritários e rotulá-los como criminosos. É normalizado prender ativistas de direitos humanos, como perigosos subversivos.
A retórica anti-direitos (humanos), que atualmente tem como expoente mais mediático Donald Trump e as suas famosas ordens executivas, não é, infelizmente, nem centrada apenas nos EUA nem nova. Os exemplos da Hungria e da Turquia são disso paradigmáticos. O que Trump consegue com o seu poderio económico e projeção internacional é conseguir inspirar outros países a seguirem as suas práticas, a legitimarem comportamentos que até há pouco não seriam aceitáveis. Adicionalmente ajudam-se mutuamente – uma “internacional” de extrema-direita/direita autoritária. Traz consigo a vassalagem de grandes empresas e interesses económicos, e vastos recursos, o que permite uma implementação acelerada. Em dois meses, conseguiu implementar políticas anti género, racistas e xenófobas, que discriminam ativamente grupos como os migrantes e as pessoas trans, erradicar boas práticas de diversidade, equidade e inclusão e regredir importantes conquistas sobre direitos sexuais e reprodutivos.
Os cortes abissais na USAID levaram a uma onda de choque por todo o mundo, deixando, sem recursos, milhares de ONGs e milhões de pessoas em extrema vulnerabilidade. Aliás, a leviandade com que assuntos de relação externas são tratadas, com propostas de fazer de Gaza um resort, mostram um total desrespeito pelos seres humanos e pouco ou nenhum interesse em respeitar os seus direitos. O negacionismo da crise climática e das suas intersecções com os direitos humanos, deixam milhões de pessoas numa situação de vulnerabilidade acrescida, simultaneamente augurando para o nosso planeta um futuro negro e tenebroso.
E tudo isso é apenas o que é visível. Afinal, tomando o exemplo da Eslováquia, nem todas as erosões de direitos humanos são visíveis. Algumas são sub-reptícias, lentas, pequenas e cumulativas, até se tornaram inultrapassáveis. Começam com pequenas coisas. Um regulamento mudado, um decreto-lei, limitações a direitos específicos, situações de exceção acordadas. Pequenas mudanças, como se tirássemos pequenos punhados de areia de uma praia e um dia víssemos que já não restava areia nenhuma. Os nossos direitos humanos retirados um a um, a coberto de nos proteger de mil e uma ameaças, inventadas para nos assustar e nos distrair. Um dia, tal como a praia, podemos acordar e ver que a erosão levou o que um dia chamámos de direitos humanos consagrados.
Em “1984”, todos os aspetos da vida eram controlados. No “Admirável Mundo Novo” as pessoas eram pré-selecionadas antes de nascer para pertencer a certos grupos, com mais ou menos privilégios. Tirando as dimensões claras de ficção científica dos dois romances e o facto de ambos terem sido escritos há décadas, verificamos que o mundo que idealizaram não está assim tão distante. Líderes, democraticamente eleitos, assumem agora posturas reservadas aos ditadores, e tal como eles, lideram pelo terror. Hordas de pessoas, convencidas da bondade das suas intenções e enganadas pelas campanhas de desinformação, dão apoio e legitimidade às suas políticas e práticas. É esse o mundo em que vivemos em 2025.
Mas nos romances distópicos há sempre os que estão atentos. Os que percebem a manipulação, que percebem as intenções narcisistas, os que não estão dispostos a permitir esse controlo, a permitir que o privilégio de alguns ultrapasse os direitos de outros. Os que questionam, os que protestam, os que não estão dispostos a aceitar o status quo. Em 2025, esses são os ativistas de direitos humanos, que incansavelmente lutam pelos direitos de todos e por um mundo em que a dignidade dos seres humanos não seja posta em causa. Todos os dias chegam histórias dos quatro cantos do mundo de pessoas extraordinárias, que não se curvam perante os regimes, não deixam os seus direitos ser erodidos, que partem em defesa dos direitos dos outros, apesar das mais terríveis ameaças e práticas.
Enquanto ainda vivemos em liberdade e ainda conseguimos usufruir dos nossos direitos humanos, temos a obrigação de dar a voz àqueles que já foram silenciados. Temos a obrigação de garantir que não deixamos cair no esquecimento aqueles que todos os dias lutam pelos nossos direitos. Temos a obrigação de não nos deixar iludir pela informação falsa que circula. Temos a obrigação de não deixar erodir os nossos direitos. Esta é a nossa chamada de atenção. Estamos em modo de emergência, estamos em modo de crise. É tempo de mobilizar. É tempo de agir. Há muito a fazer, dos pequenos aos grandes gestos. Como movimento de direitos humanos, somos mais fortes na ação coletiva. É tempo de protestar, de sair às ruas, de assinar petições. É tempo de pressionar os governos para que respeitem os direitos humanos. É também tempo de liderar pelo exemplo, de sermos, cada um e todos, baluartes dos direitos humanos. A erosão ainda pode ser travada, se agirmos já.